18/10/ 2010

Desde o momento inaugural em que os materiais se encontram com a folha de papel, ocorrem infinitos instantes de decisão, acompanhados por infinitas possibilidades de erro e acidente. A relação física com os materiais sobrepõe-se, com frequência, às intenções de composição, acrescentando uma dose de imprevisibilidade a todo processo, impondo novas escolhas e procedimentos. Efeitos dependentes da constituição física de cada material, e que precedem o acto pictórico, retiram desde o primeiro momento do desenho, parte do controlo e responsabilidade da sua construção.
Privilegiando a especificidade de cada material, bem como a relação que estabelecem com o suporte, são desencadeadas respostas que fazem progredir o trabalho. Durante o processo impõe-se uma gestão dessas intervenções que se querem como parte do desenho, que são provocadas por ele, dentro do seu perímetro e de acordo com a sua materialidade.

Sobre o papel, acontecimentos sucessivos produzem novas arquitecturas, novas geografias do desenho. Após uma primeira intervenção, os diferentes traços são ordenados, repartidos e organizados em categorias que os separam e agrupam segundo as suas características específicas. Através de novas marcas e registos gráficos sublinham-se diferenças e similitudes, numa categorização análoga à que Jorge Luís Borges submete os seus seres imaginários. Surgem então apartadas as marcas coloridas das cinzentas, as transparentes das opacas, as que ficam à esquerda das que ficam à direita, das que não pertencem a grupo nenhum. Faz-se uso das vantagens que a enumeração oferece enquanto operação que permite a coexistência de elementos díspares, ou sem relação clara, lado a lado. Atribui-se um valor ou estatuto a cada elemento, tornando-o parte de um grupo, ou revelando a sua unidade. Este tipo de método é executado de forma intuitiva, e vai servindo para cumprir a tarefa de produção do desenho.

6/10/ 2010

Tomando a folha de papel como mesa, capaz de suportar e deixar conviver distintos elementos sobre si, como quadro capaz de os ordenar e situar, na sua (ainda que estranha) coexistência; faço uso da casualidade e do erro para produzir grafismos que serão alvo de posterior ordenamento e categorização.
Nesse processo são usadas lógicas de selecção determinadas pelas diferentes características de cada material: cor, textura, poder de cobertura, transparência, opacidade, brilho, permanência, método de aplicação, área preenchida. Cada característica, ou cada conjunto de traços passíveis de agrupar, dará origem a um novo procedimento que poderá assumir diferentes funções: diferenciação dos demais elementos, associação a outros, ou atribuição de uma escala de referência, recorrendo por vezes a grelhas, que estriam o espaço onde as manchas se repartem. Cada intervenção servirá uma espécie de catalogação dos diferentes elementos do desenho.

Em jeito de levantamento topográfico, o desenho vai ganhando novas camadas; cedendo a possíveis sobreposições de critérios, sem que se consiga cessar definitivamente a projecção de novos agrupamentos, mediante as diferenças e semelhanças que o próprio processo tende a produzir sucessivamente. Estes agrupamentos não se mantêm, por isso, intocáveis e impermeáveis. Instáveis, eles são passíveis de sofrer novas divisões, novos ordenamentos; dispersando e repartindo de outro modo o que antes fora unido, numa constante redefinição de normas.
É a partir da observação que esta ordenação se manifesta, transformando a observação em linguagem. Este gesto de ordenar, embora empírico, obedece a critérios rigorosos que qualificam e classificam o que é gerado sobre o papel.

O resultado, na sua aparência abstractizante, revelará um emaranhado de registos que materializam estas estranhas lógicas de categorização. O desenho surge como “meadas de lãs multicores” dispostas sobre a superfície do papel, a mesa niquelada e envolta em brancura, espaço homogéneo, esse rectângulo unido de que nos fala Michel Foucault, onde se ordenam e coexistem similitudes e diferenças, onde “se distribuem e se nomeiam uma multiplicidade de pequenos domínios grumosos e fragmentários onde as semelhanças sem nome aglutinam as coisas em ilhotas descontínuas; num canto, colocam as meadas mais claras, noutro as vermelhas, de um lado as que têm consistência mais lanuda, do outro as mais compridas, ou as que atiram para o violeta, ou as que foram enroladas em forma de bola.” (As palavras e as coisas, p.50).


23/12/2010

Os desenhos apresentam na sua estranha composição, uma justaposição de elementos irregulares e gerados pelo acaso, e elementos ordenados, tais como grelhas ou linhas paralelas. Assim, temos manchas e temos listras.

As manchas são transparentes, aquosas, matizadas, ruidosas, irregulares, ondulam o papel, revelam um tempo, um lento processo de secagem e de sedimentação do pigmento; os seus contornos compostos por curvas que se repartem em pequenos vértices, querem expandir-se para o resto da folha e, nessa vontade de se espalhar no papel, o pigmento, preso no perímetro das gotas depositadas, regista esse embate formando um contorno firme e concentrado ao longo da secagem.
Dentro dos contornos da mancha, ondulam transparências, veios; revelam-se tons e outras cores que, antes diluídas, agora se assumem e se mostram. Estas manchas, várias, repartidas pela superfície da folha, espaçadas sem rigor, surgem soltas, alheadas, suspensas. Ainda assim, alguma tendência as pode agrupar, ditando uma orientação que pode ser reforçada ou contrariada pela geometria que é posteriormente convocada.

O espaço vazio, em branco, deixado entre as manchas, é então usado por forma a localizar e relacionar estes primeiros elementos. A sua gestão será feita de modo a estabelecer associações de escala, distância, profundidade; propondo uma abordagem à sua aparência, justificando a sua posição no espaço. A malha que serve para cumprir esta catalogação, definirá afinidades e semelhanças.

Surgem então as listas para suportar as manchas. Linhas opacas, que se colocam por detrás das manchas, numa função simultaneamente solidária e controladora. As listas estabelecem uma direcção e fornecem determinado peso às manchas informes, outrora suspensas num espaço apenas limitado pelo formato da folha de papel. Fornecem uma norma clara ao desenho. As manchas deixam então de estar soltas, passando a ficar ancoradas, presas naquelas listras, como notas que numa pauta assumem finalmente o seu tom. A opacidade das linhas contrasta com a transparência e irregularidade cromática das manchas, tal como o controlo e intencionalidade contrastam com o caos e espontaneidade.

Mas estas listas, estáveis e seguras podem assumir por vezes um carácter mais inconstante, deixando-se seduzir pelas manchas. E assim sendo, as manchas, de várias cores, impregnam as linhas com a sua personalidade, exercem influência sobre estas, que cada vez que atravessam uma mancha, assumem a sua cor. Mimetizando o caos das manchas, as linhas surgem então fragmentadas, divididas irregularmente em diferentes porções e respectivos tons. Resultado deste mimetismo é novamente uma aparência caótica. Os pequenos segmentos coloridos formam novas “manchas” intermitentes, tracejados que de algum modo traduzem e replicam as marcas inicias. A influência exercida pelas manchas sobre as listas apresenta-se como a regra que simultaneamente rege e gere o desenho. Esta premissa é, neste caso, o código responsável pela organização do desenho e em parte pela sua composição.

22/05/2010

Cada desenho tem início com uma intervenção, responsável por desencadear outras; transformando o corpo em agente mecânico, que apenas pode gerir o que já existe e reagir propondo novas premissas, numa constante formulação de regras e lógicas internas. Cada nova intervenção é assumida como motivo para continuar, o acidente e o erro tornam-se efectivos e são aceites como regras das quais resulta a composição. Trata-se de gerir a imprevisibilidade e caos inerente do medium, percebendo a falha como situação privilegiada.Os diferentes momentos ficam gravados na superfície do papel, numa acumulação de registos de decisões. Acontecimentos sucessivos repousando uns sobre os outros.

27/04/2011


































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